Não é preciso trabalhar no IBGE para saber que nos últimos anos o número de brasileiros com um diploma de “terceiro grau” cresceu vertiginosamente. Basta andar pela rua e ver como existem campi em cada esquina, como se fossem Mc Donalds. Só que ao invés dos hambúrgeres sem gosto produzidos em série, os Mc Donalds do Ensino produzem profissionais da mesma forma e sem nenhum compromisso de qualidade.
É nesse cenário que se passa Fábrica de Diplomas. Uma história que começa com uma estudante baleada no campus e percorre as entranhas da educação superior do Brasil, passando por bastidores da política e da segurança pública num romance policial que é simplesmente arrasador.
Fábrica de Diplomas é tão bom que eu não tenho vergonha de comentar os defeitos como se fosse um livro qualquer, sem o constrangimento de falar mal de um autor nacional. É tão bom que desde as primeiras páginas eu me peguei pensando como é que ainda não fizeram um filme ou um seriado ou uma minissérie dessa história (Alô, Rede Globo! Alô, HBO! O que é que vocês estão esperando?). É tão bom que eu não tenho dúvidas quando digo que é o melhor livro do ano, sem nenhuma ponta de exagero, bairrismo ou condescendência.
Isso porque Felipe Pena escreve bem. Muito bem. A história corre fluída, interessante, irônica, sem parecer pedante ou didática. Em uma trama complexa e com personagens até demais (não é à toa que no início do livro tenha uma lista com o nome de todos eles, afinal, para se perder no meio de tanta gente, cada um com seus próprios interesses, não custa), o autor propositalmente deixa o leitor “no escuro”, para, aos poucos, ir revelando as camadas de sua história apenas no momento exato. Ao fazer o leitor de companheiro de investigação, Pena eventualmente ainda planta dúvidas em sua cabeça e apresenta diversas reviravoltas no decorrer das pouco mais de 300 páginas do livro. Não bastasse isso tudo, a história desafia o leitor o tempo todo com referências a manchetes tiradas do noticiário e flerta com o recurso da metalinguagem (mais sobre isso depois).
Tropa de Elite
Fábrica de Diplomas é um Tropa de Elite da Educação e não fosse a data de publicação (Fábrica de Diplomas originalmente saiu em 2008 como O Analfabeto que passou no Vestibular*), eu diria até que Pena tirou muitas de suas inspirações do maior sucesso cinematográfico do país.
O próprio início do livro marcado pelo batidão do funk remete ao filme de José Padilha. E se aquela correria do começo também te fez lembrar Cidade de Deus, logo depois da metade do livro, Felipe Pena dá uma piscadela para o leitor e coloca o nome do traficante de Dadinho. (Eu falei que o cara era bom!).
* Se não fosse isso, eu diria que aquele diálogo que tem “f*der” e “beijar” como núcleos e durou cerca de 3 ou 4 páginas tinha saído direto de Tropa 2.
** A propósito, o livro tem bastante palavrão. E nesse caso em específico, o palavrão é um elemento quase fundamental para dar verossimilhança aos diálogos. Porque, sinceramente, tem horas que não dá para apelar para eufemismos e só um palavrão resolve.
O próprio início do livro marcado pelo batidão do funk remete ao filme de José Padilha. E se aquela correria do começo também te fez lembrar Cidade de Deus, logo depois da metade do livro, Felipe Pena dá uma piscadela para o leitor e coloca o nome do traficante de Dadinho. (Eu falei que o cara era bom!).
Mesmo assim, seria injusto ficar o texto inteiro falando das semelhanças entre Fábrica e Tropa (já estamos íntimos) porque, apesar, ou melhor, além disso, dá para perceber que Pena imprime seu estilo e está mais preocupado em contar a própria história do que em estabelecer paralelos entre ela e o filme nacional mais assistido de todos os tempos.
Só mesmo um professor universitário conseguiria tecer comentários tão verdadeiros quanto ácidos acerca do sistema educacional superior brasileiro. Só mesmo um cara que possui um currículo acadêmico tão rico para misturar com tanta propriedade educação, jornalismo e psicologia. Só mesmo um morador do Rio de Janeiro para fazer descrições tão precisas da geografia e do trânsito da cidade.
E é exatamente essa brasilidade que torna o livro ainda mais atraente.
Não é mera coincidência
No início do livro, há uma inscrição que diz “Esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência”. Não é.
Mesmo aqueles que acompanham minimamente os jornais serão capazes de escutar o eco das manchetes de anos anteriores ressoar na cabeça durante a leitura. E a linha daquilo que é real e o que é ficção é tão tênue que vai fazer você correr atrás para descobrir ou confirmar quais foram as situações e personagens dos noticiários que serviram de molde para as tramas e personagens do livro.
A obra é de ficção, mas é um retrato fiel da educação superior no Brasil. Estão lá descrições “nuas e cruas” do que acontece na hora da escolha dos cursos pelas instituições (sempre dando preferência àqueles mais baratos, chamados “cuspe e giz”), a máfia das bolsas de estudo, o “milagre da multiplicação” dos campi, a farsa do vestibular nas faculdades particulares, as estratégias de marketing ridículas, os subestimados cursos politécnicos e os superestimados de pós-graduação, a falta de compromisso com o ENADE e com o ensino de um modo geral (tanto da parte da administração quanto dos professores), e o próprio despreparo dos alunos sem nenhuma condição de encarar o ensino superior, entre outras coisas.
Além disso, Felipe Pena utiliza fatos ocorridos no passado recente do Rio e outros que infelizmente ainda fazem parte do nosso presente para construir uma trama que adapta a realidade às formas da ficção. Além da já citada estudante que foi baleada em pelo campus, estão lá o analfabeto que passou no vestibular, o senador maranhense que está há anos no poder, o chefe da polícia civil que tinha ligações com o tráfico de drogas e com as milícias e armava para eleger-se deputado nas próximas eleições, o vereador simpático que luta pelos animais, mas que também tem conexões duvidosas, o jogador de futebol que financiou a fundação de um campus novinho, o deputado dos “instintos mais primitivos”, etc, etc, etc.
E para quem mora no Rio ainda tem o bônus de reconhecer cada esquina da cidade sendo usada como cenário!
Os habitantes da Cidade Maravilhosa vão perceber que embora a maior inspiração para a Bartolomeu Dias seja aquela faculdade que teve o analfabeto aprovado no vestibular, foi palco da estudante que levou o tiro, tem campus até na lua e nome de fundador da cidade (a Estácio), o autor, até para tentar se livrar de algum possível processo, misturou outras instituições famosas do Rio de Janeiro. Porque quem tem campus na Piedade é a Gama Filho, na Rua da Assembléia com Pós-Graduação e filas no prédio é a Cândido e a outra com unidade no Maracanã é a Veiga de Almeida. E eu não sei você, mas eu fiquei com a impressão de que o Centro Universitário Provinciano seria um acrônimo para PUC ao contrário....
* Também vale lembrar no campo das negociações que nos últimos anos, a UVA foi vendida para um grupo de americanos. E a Univercidade (é com C mesmo) se juntou com a rival UGF, causando muita indignação dos funcionários e problemas administrativos.
Essa precisão geográfica, inclusive, rendeu um dos momentos mais legais da leitura. Estava eu no meu ônibus, saindo de Botafogo, e quando estávamos entrando na Presidente Antônio Carlos (aquela rua dos tribunais), um dos personagens que havia saído do campus de Psicologia da fictícia UFC em Botafogo (e campus de Psicologia em Botafogo só pode ser a UFRJ!) também entrou na mesma rua exatamente no mesmo momento que eu. Imagina a emoção!
Aquele momento em que você olha pro lado e percebe que está no mesmo lugar que o descrito no livro
(Ainda sobre as vantagens de ler um livro passado no Brasil, vale a lembrança de que, num livro gringo, a personagem de Nicole certamente ganharia um Pullitzer, ao invés do tupiniquim Prêmio Esso).
As universidades públicas
Muito embora a maioria das críticas do livro se dirija às instituições particulares, em determinado capítulo, quem fica sob a mira são as universidades públicas, que o autor conhece muito bem, já que leciona na Universidade Forno e Fogão Universidade Federal Fluminense, uma das melhores faculdades do estado. E quem já passou por uma universidade pública sabe muito bem como é que a banda toca. Professores “turistas” que quase nunca aparecem, outros mestres que eram pra ser Dedicação Exclusiva dando aula em outros lugares e sem nenhum compromisso com as aulas, o corporativismo que protege esses vermes nocivos à educação e até o envolvimento dos DCEs na safadeza. É revoltante ver como uma instituição com os melhores alunos e os melhores professores (pelo menos em tese) deixa de atingir todo o seu potencial por conta de má administração e a simples falta de vontade dos docentes. É muito fácil culpar o governo e ele certamente tem sua parcela de culpa, mas se cada peça que compõe o sistema educacional desse país (e aí eu incluo professores, alunos e coordenadores de todos os níveis, não só do superior) não fizer a sua parte, dificilmente vamos ser um país sério algum dia.
Levando em conta a minha própria experiência como aluna, em especial duas frases me chamaram a atenção: “Os alunos do último período, quase formados, já não tinham a mesma paciência de antes” e “Os melhores professores vem do mercado”.
A primeira, porque, bom, aluno do último período é assim mesmo. A gente já não agüenta mais a faculdade e sente que o tempo ali já não é mais tão produtivo quanto antes. Não vai ser uma ou duas aulas que vão fazer a diferença nessa altura do campeonato. Se antes a gente esperava com ansiedade o professor chegar, agora, se ele atrasasse 20 minutos a gente ia embora sem nenhuma dor da consciência. Até porque, muito provavelmente ele não viria mesmo.
Já a segunda vinha num diálogo, em tom de crítica, mas que, para determinados cursos, eu acho até que dono da universidade tenha sua parcela de razão. Dificilmente professores 100% acadêmicos agregam tanto quanto aqueles que possuem uma visão da necessidade do mercado. Algumas vezes, os professores do mercado sabem bem mais da matéria do que aqueles que já possuem um zilhão de títulos. Até porque muitos dos diplomas de especialização existentes são tão comprados como os da própria graduação e raramente contemplam um trabalho relevante para a sociedade. De que adianta um professor doutor se ele não domina a matéria que leciona? Ou de que adianta ter um professor doutor se ele não sabe ensinar? Numa universidade o que é mais importante: a disseminação dos títulos ou do conhecimento? O debate é profundo e a resposta não é tão simples quanto parece, tanto é que pode-se perceber uma certa contradição até mesmo dentro do próprio livro quando este tenta se posicionar a respeito. Mas tendo em vista minha própria história, é impossível não pensar que o dono da Bartô não está completamente errado.
Pastoriza vs Nascimento
Em Tropa, Capitão Nascimento era o personagem inspirado naquele ex-comandante do BOPE que também escreveu bestseller e agora cobre a parte de segurança do RJ-TV. Em Fábrica, ao receber a missão de investigar o caso da menina baleada no campus, Pastoriza toma para si o papel de herói da história. E, depois de ler a orelha do livro, é impossível não enxergar o personagem, que assim como Pena, é psicólogo, professor e romancista como um alter ego do próprio autor. (Não à toa, é ele o personagem recorrente no resto da chamada Trilogia do Campus).
Certas horas, essa percepção irrita um pouco, pois Pastoriza, por ser o único personagem íntegro no meio de tanta sujeirada, fica parecendo autoelogio da parte do autor. Ao mesmo tempo, em outros momentos, Felipe Pena, também por meio de Pastoriza, referencia não só a si mesmo como ironiza a própria obra como “ficção jornalística underground”. Porém logo depois, o delegado Vasconcellos revela-se fã de Antônio e comenta que ele deveria dar mais valor a si mesmo. Desnecessário.
Além disso, a personalidade acadêmica e culta do professor não convence como herói definitivo. É um personagem ingênuo demais dentro de todo o jogo de poder envolvido. Mas, se em certas horas senti que as semelhanças entre Pastoriza e o próprio autor incomodavam e que faltava na história um Capitão Nascimento (alguém que sabe o que está fazendo, que imponha respeito, que dê porrada!), tudo isso foi revertido no final, quando todo o passado do personagem foi fundamental para desvendar talvez o maior mistério do livro. E se antes o autor apenas flertava com a metalinguagem, nessa hora, ele a abraça com toda a força, e torna a resolução do caso extremamente elegante. E aí quem teve vontade de abraçar o cara fui eu.
Fábrica de Diplomas disseca a estrutura da educação brasileira de um jeito que deixa até os envolvidos na área de queixo caído, envolve o leitor de um jeito que dá vontade de indicar o livro para todos os amigos e o desafia de um jeito que te faz se sentir mais inteligente no final da leitura. É literatura policial das boas e tem tudo para derrubar preconceitos e se tornar um fenômeno tal qual Tropa de Elite. Nascimento podia até correr atrás dos bandidos, mas até ele sabe que enquanto a educação estiver na mão desses outros bandidos (em todos os níveis) que em nada se preocupam com o ensino, não adianta subir o morro, porque desse jeito, o Brasil nunca será um país sério.